Após aprovação nos EUA e na Europa, medicamento chega às farmácias do Brasil esta semana e poderá substituir tratamento que se mantém o mesmo há 20 anos
A insuficiência cardíaca é extremamente incapacitante - Shutterstock
RIO — Chega esta semana às farmácias brasileiras uma nova classe de remédio para tratar insuficiência cardíaca que, segundo estudos, é capaz de reduzir em 20% o índice de morte desses pacientes e em 21% o número de internações. Isso promete melhorar muito o difícil prognóstico enfrentado até hoje por quem tem insuficiência cardíaca — apenas metade dessas pessoas está viva cinco anos após o diagnóstico.
O medicamento, chamado de Entresto — feito com as substâncias sacubitril e valsartana —, surgiu a partir de um estudo realizado na Escócia, teve aprovação nos Estados Unidos e na Europa cerca de dois anos atrás e conseguiu, agora, a definição de seu preço em terras brasileiras, após obter a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): uma caixa com 28 comprimidos do medicamento custa R$ 147.
A insuficiência cardíaca é uma doença debilitante e com alto risco de morte, já que o coração se torna incapaz de bombear a quantidade suficiente de sangue para o organismo. Isso acontece porque os músculos do coração se tornam fracos ou rígidos demais para trabalhar de maneira adequada. Como consequência, as hospitalizações dos pacientes são frequentes.
3 MILHÕES DE PACIENTES NO BRASIL
O problema atinge cerca de 3 milhões de pessoas no Brasil. Informações do DataSUS, do governo federal, em 2015, registraram 219 mil internações por insuficiência cardíaca. O custo da doença para a economia mundia chega a US$ 108 bilhões por ano — o equivalente a mais de R$ 342 bilhões, uma cifra espantosa. Para o Brasil, o impacto na economia é de R$ 22 bilhões.
A insuficiência cardíaca é a segunda causa de hospitalização em pessoas acima de 65 anos, e a taxa de mortalidade é maior do que a de vários tipos de câncer.
Uma pesquisa do Departamento de Insuficiência Cardíaca (DEIC) da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) traçou o perfil dos brasileiros com insuficiência cardíaca. Entre os principais fatores de risco no país estão: pressão alta (70%), diabetes (34%), histórico de infarto (27%) e insuficiência renal crônica (24%).Essa doença é mais comum em pessoas com mais de 65 anos e acima do peso.
Apesar de os homens apresentarem mundialmente maior prevalência do problema, no Brasil, segundo os dados da SBC, 60% dos pacientes diagnosticados são mulheres.
RENOVAÇÃO NO TRATAMENTO
Para o principal autor do estudo chamado de Paradigm-HF, que levou ao desenvolvimento do remédio, será possível mudar radicalmente o modo como esses pacientes são tratados a partir de agora:
— Os resultados impressionantes do estudo Paradigm-HF me levam a acreditar que, uma vez aprovado, o LCZ696 [antigo nome do Entresto] poderia rapidamente substituir o principal tratamento utilizado há mais de 20 anos, os inibidores da ECA — comentou o principal pesquisador, John McMurray, no final de 2015, ocasião em que o Comitê para Produtos Medicinais de Uso Humano (CHMP), órgão europeu, concedeu parecer positivo em relação ao medicamento.
O estudo liderado por McMurray, maior pesquisa clínica já desenvolvida para insuficiência cardíaca, envolveu mais de 8 mil pessoas e comprovou que esse medicamento é mais eficaz do que o que já existe de melhor atualmente, possibilitando que os pacientes acima de 65 anos vivam quase 1,5 ano a mais.
O pedido de aprovação do remédio à Anvisa foi submetido em junho de 2015, e, desde então, a expectativa era disponibilizar o medicamento aos brasileiros ainda no primeiro semestre de 2017.
Os principais sintomas da insuficiência cardíaca são falta de ar, fadiga, retenção de líquidos, inchaços nos tornozelos e pés e dificuldade de dormir, o que impacta de modo significativo a qualidade de vida. Ainda que milhões de pessoas vivam com o problema, a maioria delas tem dificuldade de reconhecer os sintomas ou os associam a sinais do envelhecimento.
TÃO MALIGNA QUANTO CÂNCER
Confira abaixo uma entrevista com o principal autor da pesquisa que deu origem ao novo medicamento, o médico escocês John McMurray, considerado o "Papa" da insuficiência cardíaca. Ele é professor da Universidade de Glasgow, autor principal das diretrizes de manejo sobre insuficiência cardíaca para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e para o Scottish Intercollegiate Guidelines. Em 2014, McMurray foi citado como uma das mentes científicas mais influentes do mundo pela Thomson Reuters.
John McMurray, professor da Universidade de Glasglow, na Escócia, que desenvolveu o estudo sobre as substâncias que compõem o novo remédio - Divulgação/Universidade de Glasglow
O GLOBO: Um estudo assinado pelo senhor e publicado no "European Journal of Heart Failure" indica que a insuficiência cardíaca pode ser considerada tão "maligna" quanto alguns tipos comuns de câncer. Por quê?
John McMurray: Verifiquei que os dados oficiais de mortes mostram que a insuficiência cardíaca mata mais pessoas do que o câncer de próstata em homens, e do que o câncer de mama em mulheres, por exemplo. Esse é um estudo que fizemos porque eu estava preocupado com o fato de a insuficiência cardíaca não ter tanta atenção quanto outras doenças que têm, inclusive, uma mortalidade menor. O que eu decidi fazer foi olhar os cinco tipos mais comuns de câncer em homens e em mulheres, além do número de pessoas que tiveram ataques cardíacos, para comparar com a sobrevivência de pacientes com insuficiência cardíaca.
O GLOBO: E quais foram os resultados?
JM: O que descobrimos foi que, excluindo o câncer de pulmão, a insuficiência cardíaca é mais mortal que qualquer outra forma de câncer e ataques cardíacos. E, de fato, vimos que mais mulheres morrem de insuficiência cardíaca do que de câncer de mama, ovário, útero e colo do útero. E, apesar de haver mais conversas sobre a importância desses cânceres femininos, muito mais mulheres morrem de insuficiência cardíaca do que de todos esses cânceres juntos. O que estamos tentando fazer é destacar a importância da insuficiência cardíaca.
O GLOBO: Como mudar esse quadro?
JM: Nós estamos tendo muita sorte na área de insuficiência cardíaca. Mais do que na maioria dos cânceres. E agora descobrimos um grupo de medicamentos [elaborados com as substâncias sacubitril e valsartana] que são altamente eficazes e podem reduzir bastante o risco de morte e hospitalizações, nas quais os pacientes sofrem bastante. A insuficiência cardíaca é considerada uma doença de progressão rápida, na qual as pessoas passam mal, vão para o hospital e morrem. Nós podemos mudar tudo isso com um pequeno grupo de medicamentos e alguns equipamentos, além de cirurgias específicas.
O GLOBO: Mas demorou muito anos para que surgisse essa nova classe de remédios, não é?
JM: Sim. Entre o fim de 1998 e o início de 1999, nós descobrimos que um grupo de medicamentos chamados inibidores da ECA que reduzem a mortalidade. Cerca de 10 anos depois, nós descobrimos que os beta-bloqueadores poderiam reduzir a mortalidade e, ao mesmo tempo, os ARM (antagonistas de mineralocorticoides) também. Então, em 10 anos, descobrimos três tratamentos que poderiam reduzir a mortalidade de pacientes. Mas, depois, não tivemos mais desenvolvimento de medicamentos com sucesso. Até agora, porque recentemente encontramos esse novo tratamento: um medicamento de uma nova classe terapêutica que inibe uma enzima chamada neprilisina e também bloqueia o receptor da angiotensina. Esse novo tratamento poderá reduzir bastante a mortalidade e a hospitalização e fazer com que os pacientes passem a não perder a qualidade de vida ao longo do tempo. Temos essas interrupções na inovação e a última foi a mais longa, mas sabemos temos algo novo que fará uma grande diferença.
O GLOBO: O Brasil está preparado para lidar adequadamente com pacientes de insuficiência cardíaca?
JM: Não conheço a fundo, mas o que vi [ele visitou o Brasil em maio deste ano, no XVI Congresso Brasileiro de Insuficiência Cardíaca] é que vocês têm uma Sociedade Médica de Insuficiência Cardíaca, vocês têm um congresso que é bem estruturado e vocês contam com médicos que fazem muitas e boas perguntas. São médicos que demonstram estarem interessados em insuficiência cardíaca e determinados em fazer boas coisas aos pacientes, participando de pesquisas relevantes. Então a minha opinião é que o Brasil está indo bem.
Fonte : O Globo
POR CLARISSA PAINS