Dificilmente um slogan seria mais chamativo: “o primeiro viagra feminino”. É dessa forma que tem sido apresentada ao público a substância flibanserina, que, na terça-feira passada, recebeu autorização para ser vendida nos Estados Unidos como um tratamento para disfunção sexual em mulheres. O anúncio de que a FDA, agência americana reguladora de medicamentos, havia aprovado o remédio, repercutiu no mundo inteiro e fez com que a empresa fabricante, Sprout Pharmaceuticals, fosse incorporada pela Valeant International dois dias depois, em um negócio de US$ 1 bilhão. No entanto, tão grande quanto o lucro esperado com o produto é a polêmica em torno dele. Enquanto alguns saudaram a chegada dos comprimidos rosas ao mercado, muita gente considerou a decisão equivocada e considera que ela será mais prejudicial que benéfica às mulheres.
O complicado processo de aprovação deixa claro que não há consenso sobre o remédio, que será vendido nos Estados Unidos com o nome de Addyi. Por duas vezes, em 2010 e 2013 — quando a patente pertencia à Boehringer Ingelheim Pharmaceuticals —, a FDA rejeitou o medicamento. Acabou mudando de opinião agora, depois que um comitê consultivo de especialistas recomendou a liberação em junho passado.
Crítica do remédio, a socióloga Thea Cacchioni, professora da Universidade de Victoria, no Canadá, diz ao Correio que a mudança de opinião da agência se deve principalmente a uma campanha pública financiada por empresas farmacêuticas, inclusive a Sprout, que comprou a droga da Boehringer Ingelheim. Intitulado Even the score (empate o jogo), o movimento de defesa da flibanserina, encampado por médicos e grupos de consumidores, trazia o argumento de que as mulheres que sofrem com a diminuição do desejo durante a pré-menopausa também tinham direito a serem ajudadas, assim como os homens podem contar com o Viagra.
“A campanha acusou a FDA de sexismo por não ter aprovado a flibanserina. Isso colocou a agência sob uma intensa atenção pública, mas a maioria das pessoas que apoiaram a Even the score não tinham conhecimento do grave conflito de interesses que estava por trás desse movimento aparentemente popular”, afirma Cacchioni, que, em 2010, foi ouvida pela agência reguladora em uma das audiências sobre o produto. “Vai haver consequências negativas. Graças à falta de educação sexual, muitas mulheres podem acreditar que têm um transtorno se não tiverem muito desejo em diferentes estágios da vida. Posso prever que muitas serão pressionadas pelos parceiros a tomar o medicamento.”
Neurotransmissores
A Sprout alega que completou de forma bem-sucedida todos os testes clínicos que a FDA solicitou e ressalta que dos 24 especialistas que compunham o painel de análise montado pela agência, 18 se pronunciaram pela liberação. “Com a ciência do nosso lado, além de um diálogo encabeçado por advogados, especialistas clínicos e pacientes sobre a necessidade significativa de tratamento para o transtorno do desejo sexual hipoativo, nós finalmente temos Addyi, um avanço inédito para mulheres”, afirma a empresa por meio de sua assessoria de imprensa.
Cacchioni rebate dizendo que a decisão foi influenciada pela comoção gerada pela campanha e ignorou que muitos estudos mostraram que o efeito da droga não era tão superior ao de pílulas de placebo (sem efeito químico) e que traz significativos efeitos colaterais, como tontura, náusea e perda de consciência. “Se você olhar as transcrições da última audiência, o painel de análise não tinha uma única coisa positiva a dizer sobre a segurança e a eficácia da flibanserina, mas, no fim, decidiu aprovar com base na demanda. Isso manda uma mensagem muito perigosa para as companhias farmacêuticas”, completa.
Outro ponto que muito questionado pelos críticos de Addyi diz respeito ao problema que ele ajudaria a tratar. O transtorno do desejo sexual hipoativo é descrito como uma perda acentuada de interesse sexual, comum em mulheres na pré-menopausa. Uma das causas seria um desbalanço de neurotransmissores (substâncias ativas no cérebro), sobre os quais a flibanserina atua, o que favoreceria um aumento do desejo sexual.
Aqui, o grande conflito acontece entre duas visões distintas sobre o que, no comportamento humano, deve ser considerado patológico. E mais: como determinar que uma forma de agir ou sentir pode ser descrito como um transtorno? No caso do desejo feminino, como mensurá-lo a ponto de garantir que há algo errado. E como assegurar que a falta de desejo decorre de problemas cerebrais, e não de fatores emocionais ou circunstanciais, como um casamento insatisfatório? “Normas de desejo variam de era para era, de cultura para cultura. Vários fatores sociais, políticos e econômicos podem reduzir o desejo”, argumenta Cacchioni.
“Pode ajudar um pouco”
A aprovação da flibanserina nos Estados Unidos ultrapassou o debate científico, na avaliação de John Thorp, pesquisador da Escola de Medicina da Universidade da Carolina do Norte e coautor de um estudo sobre a droga realizado em 2009, com financiamento da Boehringer Ingelheim Pharmaceuticals, primeira fabricante da substância. Em sua avaliação, a última decisão da FDA (pela aprovação) foi influenciada mais pelo empenho vigoroso de consumidores e menos pela ciência do que as anteriores (quando a droga foi rejeitada). No entanto, o médico prefere não dizer se considera a aprovação uma decisão acertada. “Seria uma opinião pessoal”, afirma.
Thorp explica que Addyi é uma droga bem diferente do Viagra. Enquanto o segundo atua nos vasos sanguíneos que irrigam o pênis, a primeira age no cérebro para aumentar o interesse e o desejo sexuais. Trata-se de uma tarefa bem mais complexa e muito mais difícil de mensurar, lembra. “A ciência diria que os efeitos são modestos e que a substância seria, no máximo, um auxiliar que pode ajudar algumas mulheres”, diz, sem descartar que pessoas que se sentem desconfortáveis com a falta de desejo podem ser beneficiadas por outras abordagens, incluindo terapias psicológicas. “A sexualidade é um comportamento complexo, e nosso cérebro é a chave da equação. Eu acho que aconselhamento e apoio continuam sendo o propulsor principal do tratamento. A droga pode ajudar um pouco.”
Fonte: Correio Braziliense